O Brasil enfrenta um déficit habitacional configurado tanto pela falta de casas quanto pela precariedade daquelas que já existem, muitas delas, em áreas de risco. “São as chamadas moradias autoconstruídas, ou seja, levantada por moradores e sem um olhar técnico de um arquiteto ou engenheiro. Elas são a maioria no país”, explica o doutor em geografia urbana pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador de políticas públicas de urbanismo Renato Balbim. O último levantamento da Fundação João Pinheiro (2019) apontou um déficit habitacional de mais de 5,8 milhões de residências no país, sendo 5 milhões em área urbana e cerca de 800 mil na área rural.

“A estimativa é que quase 80% desse déficit ocorra entre pessoas que ganham de zero a três salários mínimos. Como as moradias exigem financiamento, elas não são vistas pelo mercado como sujeitos de crédito e ficam à margem”, pontua a coordenadora da União Nacional por Moradia Popular Ivaniza Rodrigues.

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“O mercado busca lucro e não constrói para essa faixa de renda. Assim, políticas públicas de habitação são necessárias justamente para construir casa para quem não acessa a moradia formal e para qualificar aquelas residências que já existem”, resume Balbim.

Além disso, a moradia digna também é um direito constitucional. “Para o ordenamento jurídico brasileiro, somente a partir da Emenda Constitucional nº 26/2000 é que a moradia passou a ser considerada efetivamente como um direito fundamental e social. Isso passou a demandar do Estado ações para garantir a concretização dele”, pontua o advogado e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) Diego de Paula.

Conquistas recentes

Historicamente, as políticas públicas de habitação se consolidaram com a criação do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) por meio da Lei 11.977/2009.“Até 1964, havia os fundos de pensões de trabalhadores e a Caixa Econômica Federal, que construíam conjuntos habitacionais. De 1964 a 1986, surgiu o Banco Nacional de Habitação (BNH) com o objetivo de construir para população de baixa renda, mas que acabou focando na classe média. Por fim, de 1986 a 2009, inexistiu uma política de habitação no plano federal”, contextualiza Balbim.

“Na constituição, a habitação é matéria compartilhada entre governo federal, estados e municípios, sem estipular as competências de cada um deles. Até então, no PMCMV, as iniciativas eram pulverizadas, com algumas cidades melhor estruturadas que outras”, acrescenta Rodrigues.

Para Rodrigues, cinco foram as principais conquistas do PMCMV: estruturar uma política pública nacional; fomentar a construção de casas para diferentes faixas de renda, incluindo aquela na qual o déficit habitacional estava localizado; travar parceria com movimentos sociais de habitação; construir aproximadamente cinco milhões de casa em uma década e, por fim, dinamizar a economia ao incentivar a construção civil.

“Além de direcionar recursos da União para a construção de casas para a chamada faixa 1, havia o MCMV Entidades, voltado à construção de moradias por meio de movimentos sociais de habitação, cooperativas e associações. Porém, apenas 3% das residências foram destinadas a essa categoria”, lamenta Rodrigues. Segundo ela, outro diferencial do programa foi mudar o conceito de habitação popular. “Todo imóvel precisava estar regularizado, com acesso à água, luz, esgoto e ruas pavimentadas. Dessa forma, a moradia passou a ser enxergada como algo integral, não apenas a casa”.

Já entre os pontos negativos, De Paula aponta a construção de conjuntos habitacionais nas bordas periféricas da cidade. “Visto o baixo custo da terra nessas áreas e a oportunidade de lucro do setor imobiliário”, analisa.“Com isso, não havia empregos próximos ou equipamentos sociais, exigindo deslocamento, transporte precário e perda de qualidade de vida. Também eram regiões vulneráveis ao narcotráfico e milícias”, enumera Rodrigues.

Ela explica que, além da estrutura física, é necessária uma estrutura social: “Ou seja, construir o cidadão que residirá na moradia formal. Sem formação, muitos se desorganizaram com os desafios que isso traz, como pagamento de prestação, tarifas e imposto”.

Problemáticas do Casa Verde Amarela

Em agosto de 2020, o governo federal alterou o nome do PMCMV para Casa Verde Amarela. “Foi um programa de marketing, porque dizia que tudo o que estava em construção no PMCMV seria entregue com o nome de Casa Verde e Amarela”, opina Balbim.“Não existia a palavra ‘habitação’ no plano de governo. Assim, houve corte de recursos e muitas moradias populares que começaram a ser construídas em 2016 não foram entregues até hoje pelo Casa Verde e Amarela”, denuncia Rodrigues.

Outra crítica é que o novo programa focou apenas nas faixas de renda 2 e 3, ignorando a faixa 1, na qual está localizado o déficit habitacional do país. “Além disso, os conselhos gestores de habitação foram extintos pelo governo em 2018, cortando o diálogo com a sociedade civil”, diz Rodrigues.

Além disso, a regularização fundiária – como terrenos em favelas em áreas centrais – foi realizada via financiamento. “O pobre se endivida para regularizar a terra e, ao finalizar, o mercado tradicional tem interesse em comprá-la a baixo custo e vender mais caro para a classe média. Assim, ele é empurrado novamente para outra periferia, onde o ciclo continua”, analisa Balbim.

Um terceiro ponto foi tentar direcionar terras públicas da União, que poderiam ser utilizadas em moradias populares, para grandes incorporadoras. “O programa diz que a construtora pode fazer uso dessas terras para fins múltiplos, não só residenciais. O pagamento não é em dinheiro, mas uma contrapartida de construir uma habitação, que não será popular. Ao final, é uma grande benesse para os construtores e investidores e não resolve o déficit habitacional”, enfatiza Balbim.

“Para completar, o modelo Entidades do PMCMV foi ignorado, algo que também atendia de forma significativa a produção de casas para a faixa de menor renda”, complementa De Paula.

Desafios futuros

Para Balbim, um desafio para o futuro é contar com um modelo de política pública praticado desde o Banco Nacional da Habitação (BNH). “Ou seja, direcionar verba para as grandes construtoras e mercado tradicional da habitação, de modo que a maior parte da construção de moradias se deu em terras com menor valor e em terrenos periféricos, trazendo problemas para os trabalhadores e trânsito da cidade”, reforça,

Contra isso, ele defende mais investimento no modelo do tipo PMCMV Entidades. “O recurso é direcionado para entidade, cooperativas e movimentos sociais para construir casas para os mais pobres”, explica Balbim.

Rodrigues enfatiza a necessidade de trabalhar a infraestrutura física dos bairros que irão receber as novas casas, mas também social.“É algo que os movimentos sociais fazem: organizamos as mulheres, os idosos, os jovens, as populações que irão morar ali para que elas consigam lidar com os desafios que irão surgir de forma coletiva”, defende.

Outros pontos são a regularização fundiárias de favelas em terras centrais e a destinação de terras públicas da união para a construção de moradias populares. “Temos ainda o fantasma do despejo de famílias que não conseguiram pagar o aluguel por conta dos problemas econômicos e desemprego. Elas engrossaram o número de pessoas em situação de rua”, lamenta.

“O novo governo federal terá o desafio de retomar o diálogo com as políticas urbanas e habitacionais dos níveis municipais, que foi esquecido”, pondera De Paula. Balbim destaca a necessidade de qualificar as habitações precárias já construídas por meio da assistência técnica de arquitetos e engenheiros. Ele também defende programas de governo de incentivo a aluguel social, como vistos na Europa:“Ao conseguir arcar com um aluguel em áreas centrais, trabalhadores deixam de ser empurrados para a periferia, longe de seus empregos. E dependendo da fase de vida da pessoa, nem sempre se endividar com um financiamento é a melhor opção”.

“Espera-se que o novo governo retome um programa habitacional voltado às necessidades habitacionais das populações em maior situação de vulnerabilidade e risco social, que o Programa Casa Verde e Amarela praticamente extinguiu, visto o congelamento dos investimentos nesta área e a ampliação da financeirização da moradia a esta população”, conclui De Paula.

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